domingo, 1 de fevereiro de 2009

A Aguarela e a Oficina do Mestre Zé

Com este título publicou "O PANCAS" - Boletim Informativo das Donas, na sua edição nº 2, o texto que Vitor Dias, Presidente da Junta de Freguesia, me pediu e que agora compartilho aqui:




A AGUARELA E A OFICINA DO MESTRE ZÉ



Donas, naqueles anos de 60, era considerada a aldeia modelo do concelho a avaliar pelas reportagens e artigos publicados na época pelo prestigiadíssimo Jornal do Fundão.

Possuía no seu perímetro instituições de prestígio como o Seminário ou o Abrigo de São José que, de certa forma, directa ou indirectamente, influenciavam o ambiente que se vivia na terra devido à permanência de centenas e centenas de rapazes vindos de vários pontos de Portugal, em busca de formação e que conviviam connosco no nosso meio.

Tinha Donenses ilustres espalhados pelo país que participavam activamente no desenvolvimento de vários sectores da vida nacional e que periodicamente voltavam às suas origens para descansar e conviver.

Havia os Donenses que viviam e trabalhavam na sua terra e que apesar de não terem descanso como os que chegavam, conseguiam a disponibilidade para proporcionar a todos os conterrâneos de passagem o melhor acolhimento, a melhor estadia e a maior convivência.

E era assim, com toda esta gente, que um incomparável ambiente de magia se formava, durante aqueles dias longos de verão ou em quadras festivas que consolava as nossas almas e alegrava os nossos corações.

Os que vinham de fora sentiam-se no paraíso devido às pessoas, à paisagem e ao excelente microclima e para os que já cá estavam os dias nasciam mais brilhantes, intensos e com muitos mais motivos de interesse.

Donas, pelo facto de estar paredes-meias com a sede do concelho, não tinha estruturas sociais ou de convívio. Mas o que poderia ser um constrangimento acabou por se transformar numa oportunidade de aproveitamento do que havia. O local já existia e estava ali mesmo à mão no centro da terra à beirinha da Igreja Matriz:

A oficina do mestre sapateiro, José Salvado.

Mestre Zé Salvado, homem avançado no seu tempo e no meio, com uma cultura popular, um sentido de humor, e uma simpatia fora do comum, trabalhava na banca da sua acanhada oficina diariamente cerca de 16 horas e sem alterar a quantidade ou a qualidade da sua obra de artista, aceitava que o seu espaço estivesse sempre à cunha, sempre cheio de gente, a maioria jovens, residentes ou visitantes, ávidos de uma boa conversa e sobretudo de ouvir as intermináveis e deliciosas estórias do mestre Zé.

A oficina do mestre Zé Salvado era o centro do mundo!

Ali se organizavam festas, se promoviam acções de solidariedade, se delineavam as tácticas das equipas de solteiros e casados para o habitual jogo de futebol, mesmo que este se disputasse no “multiusos” do Terreiro, se definiam os planos para o maior madeiro de sempre no adro da Igreja no Natal e a estratégia para surripiar os troncos secos de árvores aos donos durante as frias madrugadas de Dezembro.

Discutia-se política em surdina e conspirava-se contra o regime. E poucos, provavelmente, imaginariam que 30 anos mais tarde um dos ocasionais participantes chegaria a Primeiro-Ministro de Portugal!

A oficina do mestre Zé Salvado, além de um espaço de arte da sapataria, era também uma sala de exposições que o bom sapateiro aceitava de bom grado e até ajudava a fomentar e a criticar: Fotos, recortes de imprensa, versos, desenhos, esboço de pinturas, ou retratos-caricaturas feitos às pessoas típicas da terra, que tanta polémica causava aos que se reconheciam neles, acabavam por constituir um motivo extra de interesse para dois dedos de conversa dos que ali paravam ou simplesmente passavam na rua.

Uma Aguarela, que inspirou o título deste texto, pintada naquela época com a irrequietude própria da juventude, a partir da capela de S. Roque, e que retratava o núcleo central da povoação à volta da Igreja Matriz, esteve ali anos e anos exposta na parede da oficina, sempre no mesmo lugar, sob custódia do Senhor da casa…

Mas tudo muda e a Vida é uma Aguarela!



amtp@sapo.pt
Outubro de 2008

Sem comentários: