segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Ao Meu Amor Sevilhano - Carta de Desamor



Como foi possível, amor, sentirmos durante tanto tempo que o lisboeta Fado e o sevilhano Flamenco poderiam conviver eternamente e sem qualquer constrangimento?

Só a tremenda paixão, testemunhada alternadamente pelas águas calmas e doces dos nossos Tejo e Guadalquivir, poderia alimentar este desejo que ardia em nós como um fogo assanhado pelo vento.

Só o calor sufocante de Sevilha, temperado pela brisa que vem do lado do mar em Lisboa, poderia criar este ambiente de entusiasmo, bem-estar e nostalgia que nos fazia olvidar de como era impossível a nossa relação.

Jamais imaginamos, como em todas as situações de pura paixão, que tudo aquilo que vivemos pudesse ter um fim. Que tudo aquilo que construímos se desmoronasse com um simples sopro. Que tudo aquilo que idealizámos tivesse de ser refeito em novas circunstâncias e com novos actores.

Mas a realidade é bem mais objectiva e concreta que os nossos idealismos e é, por vezes, tão cruel que nos separa e mantém distantes sem hipóteses de aproximação. É como correr atrás do arco-íris que parece estar perto de nós: corremos, corremos e nunca o vamos alcançar.

Caminhamos de costas voltadas e, por isso mesmo, quanto mais andamos mais distantes estamos um do outro.

Sentimos as palpitações dos nossos corações mais desvanecidas e o sons dos nossos passos já praticamente inaudíveis a caminharem para o infinito.

Estamos já a ouvir o silêncio, aquele silêncio que nos massacra ou que nos alivia, que significa tempo de tempestade ou de bonança, que nos agrilhoa ou que nos liberta.

E é com uma indefinida sensação que chegamos a este ponto sem retorno, incapazes de perceber que tudo tem um fim e nada é eterno. Que tudo é passageiro nas nossas vidas, apesar da intensidade com que vivemos alguns momentos e que farão para sempre parte do espólio das nossas memórias.

E um dia mostraremos que é possível casar o Fado com o Flamenco!
 
(Exercício para o curso "Escrita Criativa" do Âmbito Cultural - ECI)

domingo, 29 de dezembro de 2013

Em Nome do Pai - O Livro de Nuno Lobo Antunes


A história daquela destacada figura do presépio que intriga e confunde quem aprofunda o mistério desse quadro da Natividade pela nobre missão, mas submissa e estranha, que lhe foi atribuída em nome e por vontade do Pai, fazem de José, o artesão carpinteiro, marido de Maria, Mãe de Jesus, um homem à procura da sua identidade e das razões que o levaram a ser o eleito Pai adotivo do filho de Deus.

José, entre remorsos, dúvidas e raiva, não compreende esse Deus, que põe e dispõe dos homens e que tomou como Sua a mulher que lhe estava destinada, plantando-lhe a semente de um ser que vai enviar à terra como seu filho adotivo mas que depois o deixa morrer crucificado como um ladrão.

 Mas quando tudo desaba e o sonho chega ao fim, José, do alto do outeiro de onde si avista Jerusalém, à sombra da figueira em que Judas se enforcou, desabafa em palavras o que calou uma vida inteira. Em pouco tempo, expulsa mágoas, ciúmes, sonhos desfeitos, amores traídos e revolta contra uma situação de que foi vítima inocente. Naquele momento final, hesita entre sentimentos degradantes e sentimentos sublimes. Não sabe se há-de regozijar-se com a educação que deu àquele Menino, com as convicções que incutiu nele e o viu propalar aos quatro ventos. Não sabe se há-de sentir admiração por aquele jovem de caráter firme que as multidões seguiram mas depois traíram, ou se há-de abominar a hora em que poupou a sua Mãe de ser apedrejada com Ele no ventre, como ditava a Lei de Moisés.

José, nascido na Cidade do Pão, Belém, é um homem honrado e de bem. Aceitou, em nome do Pai, fazer a figura de segundo pai do Filho de sua mulher sem questionar O Todo-poderoso e por isso mesmo é para os cristãos um verdadeiro santo – São José.

São José, uma figura de quase segundo plano para a Bíblia, é o protagonista nesta narrativa que questiona situações e ideias, muitas delas retiradas dos evangelhos ortodoxos e também de textos considerados heréticos pela Igreja e que muitos dos que trabalham e meditam na figura de Jesus Cristo não têm coragem de as pôr frontalmente sem paixões, sem facciosismos ou por medo de ofender os poderes instituídos.

Uma narrativa fluente e apaixonante, compreendida tanto por crentes como por não crentes, faz desta obra de ficção um bom exercício de reflexão sobre temas tabus através da voz, finalmente ouvida, de José.

(Exercício para o curso "Escrita Criativa" do Âmbito Cultural - ECI)